A Água Cervejeira


A ÁGUA

1 - O PAPEL DA ÁGUA

 A água é, sem dúvida, o ingrediente mais presente na cerveja, ocupando mais de 90% da composição do elixir sagrado. Não só essencial para retenção dos demais ingredientes em suspensão, possuí papel fundamental na obtenção de outros compostos que formam a cerveja.
 Quando se fala neste aspecto, quer se dizer que a água é o meio pelo qual as enzimas presentes no malte se valem para realizar a conversão de amidos, também presentes nos grãos, em açúcares, que se tornarão álcool e outros compostos e darão corpo para sua cerveja.




 Além do papel fundamental na etapa de sacarificação, a água apresenta diversas outras funcionalidades, como em diluições, resfriamento do mosto, sanitização primária dos equipamentos e lavagem das garrafas/barris.
 Não se resumindo a isto, durante a mostura, e até mesmo no resultado final, a água, com compostos em seu perfil físico-químico, tem o poder de propiciar a alteração de pH e influenciar em características decisivas para o estilo de cerveja que está sendo feito.
 Devido a isto, é de suma importância que a água empregada no processo cervejeiro seja potável e de qualidade, além claro, de ser trabalhada, ou melhor, tratada, para que atinja o perfil físico-químico desejado para a receita. Contudo, a parte de tratamento de água é um tópico a ser visto à frente, vamos tratar primeiro de qual água utilizar.

2 - QUAL ÁGUA UTILIZAR?

 Para que se produza a cerveja, você pode utilizar água de diversas fontes, podendo ser da rede de abastecimento local, mineral e de poços. 
 Quando se utiliza da rede de abastecimento, é interessante que se ferva previamente a água pra eliminar o cloro residual, que pode afetar sua cerveja. Também pode-se filtrar a água ou utilizar vitamina C para resolver o problema do cloro. Você também pode solicitar o relatório do perfil físico-químico da água da sua região à empresa responsável, onde poderá analisar se há necessidade desta fervura prévia.




 Já, caso opte por água mineral, é interessante que você escolha águas com pH abaixo de 7 (entre 6 e 7, quanto mais próximo de 6, melhor) e que apresentem um perfil o mais neutro o possível em questão de íons. Para saber disto, basta ler o rótulo, nele estão impressas as informações sobre o perfil da água (cloretos, sulfatos, magnésio, etc.), dadas em mg/l (miligrama por litro) ou em ppm (parte por milhão) (1 mg/l = 1ppm) e você deve buscar a que apresente os compostos mais próximos de 0 (veremos à frente o porquê e como relativizar isto).





 Já, para o uso de água de poços, tenha certeza da qualidade da água, filtre e ferva bem, assim pode evitar micro-organismos. Se dispuser de aporte financeiro e real interesse no hobby, além, claro, do interesse em ainda utilizar a água do poço, solicite um relatório do perfil físico-químico da água desta fonte.





 No meu caso, por exemplo, utilizo água da rede de abastecimento com vitamina C e até hoje nunca tive problemas. Já utilizei água mineral também, contudo, é mais barato utilizar da rede. Além do custo baixo, a água da rede tem uma outra vantagem que é apresentar um perfil quase neutro (isto, claro, depende da empresa, fonte, tratamento aplicado e da legislação). Em caso de dúvida, como já dito, você pode solicitar o relatório do perfil físico-químico da água da sua rede com a empresa responsável. Aqui em Curitiba, quem cuida do abastecimento é a Sanepar, onde se vale de 3 estações de tratamento para abastecer a capital e região metropolitana, então, com isto em mente, enviei um e-mail para a empresa com meu dados pessoais, minha inscrição na rede e meu endereço e solicitei o relatório. Em menos de 2 dias obtive resposta com o arquivo referente ao relatório da água da ETA (estação de tratamento de água) de minha região, com custo 0 (se você utilizar poço, prepare o bolso, o relatório particular é bem caro).

 Mas por que precisamos conhecer o perfil de nossa água? É disto que iremos tratar no próximo tópico.

Caso queira o perfil da água de Curitiba da ETA Iguaçu clique aqui (arquivo PDF, água verificada por 2 anos consecutivos).


3 - O PERFIL DA ÁGUA CERVEJEIRA

 RESSALVA: o ajuste da água é opcional. Cervejas de qualidade são produzidas sem este ajuste. O fazê-lo permite que defina melhor certas características que deseja, contudo, novamente, você não precisa fazê-lo, principalmente se esta iniciando, pois é algo trivial que irá apenas lhe ocupar tempo, dinheiro e neurônios. Recomendo focar primeiramente no processo, equipamentos e, assim que dominar tudo, investir nisto. Mas estaria omitindo informações se não discorresse sobre isto, então, irei abordar o tema e isto servirá para consultas futuras. Para o começo, apenas busque uma água com poucos íons e com pH menor que 7.0.

 Você está preparando o almoço de domingo. Foi na padaria ali na outra rua e encomendou um frango assado, colocou a sua breja para gelar e começou a preparar arroz e um macarrão para acompanhar a carne. Você quer macarrão com molho, mas não qualquer molho, aquele molho que sua mãe preparava, bem temperado, com sal equilibrado e uma pitadinha de açúcar para equilibrar a acidez. Você estava ajustando o seu molho e tinha confiança do quanto colocar de cada item porque, primeiro, você aprendeu empiricamente com sua mãe, segundo, você adaptou ao seu gosto e, terceiro, porque você tinha certeza que a base que usou para o seu molho estava livre de qualquer outro tempero ou condimento, ou, se tinha algum, já tinha ideia de como balancear para que não ficasse muito salgado, ácido ou doce, muito ralo ou muito espesso.





 Com a água cervejeira é o mesmo processo. Quando se faz o ajuste, estamos "temperando" nossa água. Claro, não iremos encher de pimenta, mostarda, alho e cebola, iremos usar sais para que atinjamos o perfil desejado. E assim fica claro o motivo de precisarmos conhecer nossa água: para sabermos o que tem nela e o quanto ainda podemos adicionar sem estragar nossa cerveja.

 Alguns cervejeiros experientes nos fornecem parâmetros para o perfil de nossa água, conforme o estilo que estamos brassando, de modo que sejam ressaltadas características que o estilo pede, ou que desejamos, contudo, é mais comum que sejam fornecidos limites inferiores e superiores de concentração e o cervejeiro "tempere a gosto" sua água, conforme o que cada íon pode oferecer, o que o estilo pede e o que deseja.
 O ajuste de sais pode ser resumido em fornecer íons que irão atuar na cerveja. Estes íons são muito específicos e cada qual desempenha sua função. Abaixo, estarão listados os íons e suas propriedades dentro da cerveja:


Cálcio (Ca++)
  • Diminui o pH do mosto ao nível ideal (trataremos disto adiante);
  • Fornece leve proteção às enzimas amilase de desnaturação por calor;
  • Diminui a viscosidade do mosto e reduz a absorção de taninos;
  • Aumenta a sedimentação de proteínas na fervura e de leveduras na fermentação;
  • Concentração ideal: entre 50 e 150 ppm;
Resumindo: auxilia na decantação de sólidos, propiciando uma cerveja limpa. Atua, também, na mosturação, garantindo maior conversão de açúcares, além de diminuir a absorção de taninos, que dão aquela sensação de secura na boca (caqui marrento, semente de uva, banana verde, etc.).
Precauções: em grandes quantidades pode afetar o desempenho na fermentação.

Cloreto (Cl-)
  • Aumenta a sensação de corpo e dulçor do malte;
  • Concentração ideal: entre 0 e 150 ppm (podendo chegar a 250 ppm conforme o estilo);
Resumindo: permite ressaltar características do malte, sendo interessante para estilos que pedem este detalhe.
Precauções: em altas concentrações pode trazer sabores salgados à bebida e impactar na atividade das leveduras.

Bicarbonato (HCO3-)
  • Aumenta o pH do mosto;
  • Concentração ideal: entre 0 e 50 ppm para cervejas claras, entre 50 e 150 ppm para cervejas âmbar e entre 150 e 250 ppm para cervejas escuras, de malte torrado;
Resumindo: auxilia no controle do pH do mosto.
Precauções: pode aumentar demais o pH, o que prejudica diversos processos como a sacarificação, aglutinação de proteínas, etc..

Magnésio (Mg++)
  • Diminui levemente o pH;
  • Nutriente para as leveduras;
  • Concentração ideal: entre 10-30 ppm;
Resumindo: pode complementar a diminuição do pH do Cálcio. É um importante nutriente para as leveduras.
Precauções: em excesso pode trazer amargor ou azedume desagradável à cerveja. Cervejas puro malte já fornecem Magnésio o suficiente para a nutrição de leveduras.

Sódio (Na+)
  • Aumenta a sensação de corpo e doçura;
  • Concentração ideal: entre 10 e 70 ppm (podendo chegar a 100 ppm);
Resumindo: tem poder de realçar o corpo e dulçor do malte.
Precauções: em presença de Sulfato é desagradável, sendo interessante usar ambos em ordem inversamente proporcional (quanto mais de um, menos do outro). Acima de 200 ppm pode gerar sabores salgados. Em altas concentrações pode matar leveduras.

Sulfato (SO4–)
  • Auxilia na degradação do amido e proteínas;
  • Ajuda na filtragem e na formação do trub;
  • Realça o sabor do lúpulo e arredonda seu amargor;
  • Concentração ideal: entre 10 e 50 ppm para cervejas menos amargas, entre 50 e 150 ppm para cervejas amargas e entre 150 e 350 ppm para cervejas muito amargas;
Resumindo: íon essencial para ressaltar caraterísticas do lúpulo e arredondar seu amargor, sendo especialmente aplicado em cervejas que solicitam uma presença marcante do lúpulo. 
Precauções: na presença de sódio pode gerar uma sensação áspera desagradável. Não se deve ultrapassar os 350 ppm.

4 - INTRODUZINDO OS ÍONS

 Como dito anteriormente, os íons são inseridos na água com a adição de sais. São sais muito específicos que estarão listados abaixo. Mas por que sais? Bom, isto fará com que tenhamos que lembrar das aulas de Química do Ensino Médio.
 A matéria é constituída de átomos. Diversos pensadores e cientistas já trataram do assunto, cada qual apresentando seu modelo do que seria um átomo. Segundo o que nos conta a história, o primeiro a pensar neste tema foi Leucipo, na Grécia Antiga, juntamente com seu discípulo, Demócrito. Para eles, qualquer coisa poderia ser dividida ao meio, até chegar a um ponto indivisível, o átomo, que significa "não divisível". Hoje, muitos modelos atômicos depois, sabemos que existem partículas menores que constituem os átomos e até partículas menores ainda que as constituem.



 Dentre as partículas que constituem os átomos, podemos destacar os elétrons, descobertos por Thomson em seu experimento de raios catódicos. Os elétrons, como o nome sugere, são partículas carregadas eletricamente (carga negativa) e eles orbitam o núcleo do átomo, que possui carga positiva (constituído de prótons (carga positiva) e nêutrons(eletricamente neutros)).


Representação do experimento dos raios catódicos.
Elementos do átomo.
 Os elementos químicos possuem massa, número atômico e carga. Cada elemento se diferencia do outro pelo número atômico, que equivale ao número de prótons em seu núcleo e, um mesmo elemento, pode apresentar átomos com diferentes números de elétrons, o que configura a carga, logo, íons.



 Definiremos, portanto, o que é um íon: é um átomo ou um grupo atômico eletricamente carregado. Portanto, para um mesmo elemento, átomos que possuam mais elétrons que o elemento em  seu estado natural, são carregados negativamente e chamados de ânions (exemplo de nosso caso: Cl-) e, átomos que possuem menos elétrons, são carregados positivamente e chamados de cátions (exemplo de nosso caso: Na+). Contudo, não somente átomos podem ter carga, moléculas apresentam esta característica (exemplo do nosso caso: SO4-).



 Mas, devido às interações atômicas e moleculares, nossos tão desejados íons não são possíveis de se obter puros, por isto, desta forma, os obtemos através de sais, que são produtos de uma reação de um ácido com uma base (exemplo clássico: ácido clorídrico + soda = sal de cozinha + água (HCl + NaOH = NaCL + H2O)).
 E quando inserimos os sais em meio aquoso, ocorre a mágica da dissociação iônica, onde os íons são separados (por exemplo, o sal de cozinha de fórmula NaCl é dissociado em Na+ e Cl-). Portanto, fica óbvio o motivo de usarmos sais para a obtenção dos íons para nossa água. Mas, quais sais?

5 - SAIS CERVEJEIROS

 Os sais cervejeiros são listados abaixo:
  • Cloreto de sódio (NaCl);
  • Cloreto de Cálcio (CaCl2);
  • Bicarbonato de Sódio (NaHCO3);
  • Carbonato de Cálcio (CaCO3);
  • Sulfato de Cálcio (CaSO4);
  • Sulfato de Magnésio (MgSO4);

6 - O pH

 No exemplo dado no início desta seção, foi comentando da pitada de açúcar no molho para diminuir a acidez. Isto é uma prática muito adotada na cozinha caseira e, para a cerveja, não é diferente. Isto quer dizer que vamos colocar açúcar em nossa água? Bem, não.
 Para que a sacarificação ocorra de forma satisfatória, o pH deve estar entre 5.2 e 5.5, bem diferente do nível de nossa água comum, onde, normalmente a água comercializada costuma estar com o pH acima de 6.5, muito provavelmente, na casa dos 7.0. Então, precisamos acidificar o meio. Para isto, fazemos adições de ácidos (além dos sais que contribuem para a alteração de pH). Os ácidos comumente usados são:

  • Ácido Lático;
  • Ácido Fosfórico;
  • Ácido Clorídrico;
  • Ácido Sulfúrico;
  • Ácido Cítrico;


 Bom, alguns desses ácidos são muito fortes (mesmo que sejam bastante diluídos), caros e de difícil acesso para pessoas físicas aqui no Brasil. Lembro que já utilizei muitos deles na faculdade, sempre nos laboratórios realizando experimentos e é muito divertido. Mas são coisas que eu não gostaria de ter em casa, por segurança e até por uma questão de que com o tempo alguns destes ácidos vão perdendo sua concentração para o ambiente (Ácido Clorídrico, a cada abertura do frasco, perde um pouco de sua concentração, por exemplo).
 Então, para acidificar o mosto, um desses é interessante de se trabalhar, que é o Ácido Fosfórico. Em conjunto com o Bicarbonato de Sódio, você pode acidificar e alcalinizar sua água até "onde quer" (cuidado com a concentração do Sódio).



 Mas, como saber o pH conforme as adições? Existem calculadoras para isto e iremos tratar delas no tópico abaixo, mas é uma estimativa, para saber o pH real existe um instrumento de medição chamado pHmetro (pronuncia-se pêagâmetro), o qual, se bem calibrado, fornece imediatamente o pH da solução.

 


 Outra alternativa são as fitas indicadoras de pH, as quais não necessitam calibração e também indicam instantaneamente o pH da solução. Contudo, por se tratar de um método de comparação de cores, fica sujeito à influência da iluminação do local, capacidade visual do leitor e forte atuação da interpolação, haja visto que as marcações no comparador são pontuadas de 1 em 1 ponto de pH e, nosso ajuste, necessita muitas vezes de divisões menores. Contudo, é possível se utilizar até com certa precisão junto com o auxílio das calculadoras e, caso use de forma correta ambos os instrumentos, inserindo os dados certos sobre sua água e as adições, poderá ter confiabilidade.


 Por fim, acredito que o melhor, caso não queira utilizar ácidos, é optar pelo malte acidificado. Os maltes, como veremos, devido a sua modificação, tendem a abaixar o pH para a casa ideal, mas, para mostos que fogem disto, uma quantidade pequena de malte acidificado pode auxiliar na queda do pH e se torna uma opção extremamente viável e confiável.



 Agora que entendemos um pouco sobre sais e pH, vamos ver como controlar isto.

7 - COMO CALCULAR ADIÇÕES DE SAIS E pH

 Para usar os sais, você precisará de um dispositivo com acesso à internet, uma balança de precisão e, claro, os sais. O software cervejeiro Beersmith calcula as adições para você, o programa custa cerca de R$ 120,00 (junho de 2019) e recomendo fortemente o seu uso. Mas, para quem não quer gastar com isto por momento, temos o site Brewer's Friend, que oferece duas calculadoras de adições muito intuitivas e funcionais, uma básica (clique aqui para acessar) e outra avançada (clique aqui para acessar). Costumo usar a simples e me dou bem. A diferença entre as duas é que a calculadora avançada permite que se calcule o pH da água e do mosto.




 Ambas são muito intuitivas e, em 5 minutos, você aprenderá a usá-las. Contudo, em breve lançarei um tutorial de como usar as duas e linkarei aqui. Por momento, saibam que com elas podem calcular bem o que se deseja. Também é interessante ter fita indicadora de pH e, se possível, um pHmetro.



Vista parcial da calculadora do site Brewer's Friend.


CONCLUSÃO

 Acredito que, com estas informações, vocês já poderão quebrar bastante a cabeça com relação à água cervejeira. Mas não se assustem! Como disse, o ajuste é opcional e, recomendo novamente: procure uma água com baixo teor dos íons citados e com pH entre 6.0 e 7.0, sendo que, quanto mais próximo de 6.0, melhor. Deixe para ajustar sua água quando se sentir confiante com seus processos, equipamentos e demais informações, voltando aqui para consultar a respeito.
 No próximo post tratarei sobre os maltes! Vejo vocês lá!


Abraço a todos! Boas brejas e boas brassagens!

Cordialmente, Eric Carbobiach

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